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Como se compara o ataque à democracia no Brasil com o dos EUA?
No domingo, apoiantes do ex-presidente nacionalista brasileiro Jair Bolsonaro invadiram as sedes dos três poderes, em Brasília, a capital do país. O objetivo dos manifestantes é anular a eleição que levou o líder de esquerda Lula da Silva ao poder no início deste mês.
Os bolsonaristas saquearam os edifícios políticos, sempre ostentando a bandeira brasileira com o lema “Ordem e Progresso”. No entanto, esta tentativa de inverter a transferência pacífica de poder para o novo presidente acabou por fracassar.
Trata-se do maior “assalto à democracia” brasileira de décadas, pelo que chocou todo o mundo. Contudo, o mais curioso é a semelhança à revolta nos Estados Unidos da América (EUA), dois anos antes. A 6 de janeiro de 2021, apoiantes do ex-presidente republicano Donald Trump invadiram o Capitólio em Washington D.C., para tentar impedir Joe Biden de tomar posse.
As parecenças levaram comentadores e analistas a estabelecerem comparações entre ambos. Mas serão as insurreições assim tão idênticas?
De facto, é o que aparentam ser. O enredo que os tumultos partilham é notavelmente semelhante. Em ambos os casos, um presidente de extrema-direita, que encoraja os cidadãos a reagirem politicamente com firmeza, e com um gosto pela utilização do Twitter, contesta a derrota numa eleição democrática, propagando teorias da conspiração para a sua fiel base de seguidores.
Tal atitude acaba por se transformar numa revolta violenta que visa os edifícios do coração democrático de ambos os países.
As janelas são esmagadas, as obras de arte e os pontos de referência são danificados – no caso do Brasil, inclui-se a própria Constituição de 1988. Os autores são manifestantes que trazem consigo a bandeira da respetiva nação.
No centro de ambas as revoltas, encontra-se uma ideologia nacionalista idêntica, que tem um historial de resistência às transferências democráticas de poder.
“Uma patética tentativa de golpe de Estado de Bolsonaro” foram as palavras utilizadas pelo historiador argentino Federico Finchelstein, especialista em história fascista, para descrever os acontecimentos de domingo.
Consequentemente, tanto Biden como Lula condenaram ferozmente os manifestantes, rotulando-os como extremistas e ameaças à segurança nacional. O brasileiro foi, todavia, um passo mais longe: chamou os rebeldes de “fascistas”, uma palavra forte que os líderes dos EUA têm geralmente hesitado em utilizar.
Por último, em ambos os casos vê-se o líder derrotado aterrar no mesmo lugar, o estado norte-americano da Florida. Enquanto Trump pode ter encontrado refúgio na sua colossal residência Mar-a-Lago, o destino de Bolsonaro parece um pouco menos glamoroso, uma vez que o ex-presidente foi alegadamente visto a comer asas de frango num restaurante de fast-food KFC, em Orlando.
No entanto, embora as comparações entre os tumultos antidemocráticos no Brasil e nos EUA possam ser adequadas, diferenças-chave permanecem.
Em primeiro lugar, o timing das duas insurreições não é assim tão semelhante quanto parece. A revolta do Capitólio aconteceu uma quinzena antes da tomada de posse de Biden, enquanto a do Brasil ocorreu uma semana após a tomada de posse de Lula. A primeira representou uma tentativa de dificultar a transferência de poder. Já a segunda visava a sua anulação.
No Brasil, os manifestantes tinham ainda um outro alvo: o Palácio Presidencial. A Casa Branca, onde Trump ainda residia oficialmente a 6 de janeiro de 2021, manteve-se intacta.
Mas talvez a maior diferença esteja nos contextos sociopolíticos que envolvem os acontecimentos.
Tratando-se de um país cuja democracia não sofreu grandes perturbações ao longo do século passado, o dia 6 de janeiro veio assombrar a memória pública dos EUA. Ficou marcado como um evento particularmente sombrio, que é frequentemente motivo de intensos debates mediáticos e académicos.
O Brasil, por outro lado, tem uma relação mais turbulenta com a democracia, que só foi formalmente reintroduzida em 1985, depois de uma ditadura militar de 21 anos. O século que deixou para trás é pontuado por revoluções, golpes e revoltas, e a sua história é de maior instabilidade política do que a do vizinho de cima.
Os próprios militares desempenharam um papel bastante distinto nas revoltas antidemocráticas dos dois países. Antigos membros das Forças Armadas podem ter sido implicados nos ataques do Capitólio dos EUA. Já no Brasil, oficiais militares de alto nível apoiaram os protestos pró-Bolsonaro que precederam os tumultos, embora ficando aquém da participação nos tumultos de domingo.
“Penso que é justo dizer que segmentos do exército brasileiro estavam a encorajar o que aconteceu”, escreveu o historiador norte-americano Rafael Ioris. “Mas, afinal de contas, as Forças Armadas não agiram”.
O próximo passo é comparar as consequências de ambos os eventos.
O sistema de justiça dos EUA adotou uma abordagem dura: centenas de revoltosos foram condenados. Consequentemente, foram criticados por grande parte da imprensa, embora a gravidade dos ataques de 6 de janeiro continue a ser mais controversa entre os conservadores.
Da mesma forma, Lula pode prometer uma abordagem de mão de ferro. Efetivamente, disse aos jornalistas que “todas as pessoas que fizeram isto [a revolta] serão encontradas e punidas”. No entanto, uma vez que a tentativa de golpe no Brasil pode envolver indivíduos no topo da “pirâmide política” do país, resta saber se tais promessas se concretizarão.