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Equipe da ONU pede zona de não-fogo na usina nuclear da Ucrânia
A agência nuclear das Nações Unidas pediu na terça-feira uma zona de proibição de fogo em torno de um gerador nuclear ucraniano em apuros, mas, como a própria usina, a agência foi rapidamente apanhada na guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
Em um relatório altamente antecipado, os inspetores nucleares que tiveram que atravessar o campo de batalha para chegar à usina disseram que estavam “gravemente preocupados” com as condições lá.
“Estamos brincando com fogo e algo muito catastrófico pode acontecer”, disse Rafael Mariano Grossi, funcionário da ONU que liderou os inspetores, em um discurso ao Conselho de Segurança na tarde de terça-feira.
Ocupado pelas forças russas logo após a invasão da Ucrânia em março, o complexo nuclear de Zaporizhzhia está mancando há meses, seus sistemas vitais de refrigeração em risco, suas linhas de energia degradadas e seus trabalhadores ucranianos lutando para fazer seu trabalho enquanto as bombas caem.
Na terça-feira, os inspetores relataram ter encontrado equipamentos militares russos estacionados dentro de edifícios, bem como danos a edifícios que abrigam combustível nuclear fresco e resíduos radioativos. Os operadores da usina, disseram eles, estavam tendo acesso negado a algumas partes da instalação, incluindo as lagoas de resfriamento. E até mesmo o centro de emergência no local foi comprometido e agora está sendo usado por militares russos, disseram os inspetores.
Para os europeus alarmados com a perspectiva de um desastre nuclear semelhante ao de Chernobyl no coração do continente, a visita dos inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica e o relatório esse resultado tornou apenas mais claro que há pouco que o mundo possa – ou queira – fazer. Não só a agência é impotente para parar os combates em torno da usina, como o bombardeio persistiu mesmo enquanto eles estavam lá, em um ponto forçando os inspetores a se esconderem.
“A Rússia está jogando roleta russa com um incidente nuclear”, disse a embaixadora da Grã-Bretanha nas Nações Unidas, Barbara Woodward, a repórteres na tarde de terça-feira, enquanto o Conselho de Segurança se preparava para se reunir.
A equipe de inspetores, que chegou a Zaporizhzhia em 29 de agosto, pediu em seu relatório que o bombardeio fosse “interrompido imediatamente”.
“Embora o bombardeio em andamento ainda não tenha desencadeado uma emergência nuclear”, disseram eles, “continua a representar uma ameaça constante à segurança e proteção nuclear com impacto potencial em funções críticas de segurança”.
Mesmo antes de o relatório ser divulgado, algumas autoridades ucranianas estavam culpando os inspetores por parecerem relutantes em culpar a Rússia pelo bombardeio. Na terça-feira, uma autoridade local instalada na Rússia em Zaporizhzhia ofereceu uma versão espelhada da mesma crítica.
“É muito triste que a AIEA não tenha tido coragem de chamar os bois pelos nomes e declarar claramente de onde a usina e seus arredores foram bombardeados”, disse Vladimir Rogov, funcionário da administração de ocupação do Exército russo. “O que está sendo dito hoje é triste, quase pessimista.”
Edwin Lyman, especialista em energia nuclear da União de Cientistas Preocupados em Cambridge, Massachusetts, disse que não é razoável esperar que os inspetores nucleares apontem o dedo para quem é responsável pela luta em torno da usina.
“Eles não têm experiência para identificar a fonte da portaria”, disse ele. “Não é isso que eles estão lá para fazer.”
Além disso, como agência da ONU, a AIEA é, em algum nível, uma agência política e carente de autoridade.
“Eles estão pisando em gelo fino aqui”, disse Lyman. “Eles dependem das boas graças dos ocupantes para fazer isso.”
Na terça-feira, a agência nuclear disse estar preparada para iniciar consultas com os dois lados do conflito sobre uma zona de segurança ao redor da usina. Falando nas Nações Unidas, o secretário-geral António Guterres disse: “Como primeiro passo, as forças russas e ucranianas devem se comprometer a não se envolver em nenhuma atividade militar em direção ao local da usina ou a partir do local da usina”.
A agência nuclear deixou dois inspetores na usina para monitorar as condições, uma medida que o embaixador da Rússia na ONU, Vasily Nebenzya, disse que seu governo saudou. Ele disse ao Conselho de Segurança na terça-feira que a visita deixou claro que a usina “está funcionando normalmente e não há ameaças internas”. O perigo real, afirmou ele, é o “bombardeio das forças armadas ucranianas”.
Ele não descreveu a posição da Rússia sobre as propostas do relatório da ONU, como a criação de uma zona de segurança. “Vamos precisar de mais tempo para estudar o documento, portanto não vou me deter em detalhes”, disse ele.
Autoridades ucranianas sustentam que a solução mais clara e segura é que as forças russas deixem o complexo.
“A visita foi apenas o primeiro passo”, disse o embaixador da Ucrânia nas Nações Unidas, Sergiy Kyslytsya, ao Conselho de Segurança na terça-feira. Ele disse: “A única maneira de finalmente remover as ameaças nucleares decorrentes da presença ilegal da Rússia na usina é a retirada do armamento e das tropas russas”.
O presidente Volodymyr Zelensky da Ucrânia, em seu discurso noturno na terça-feira, pediu à AIEA o poder de “forçar a Rússia a desmilitarizar o território” ao redor da usina e devolver o controle à Ucrânia. Ele disse que o mundo precisa de “meios adequados” para obrigar a Rússia a fazê-lo, mas não descreveu o que isso pode acarretar.
Kyslytsya negou que a Ucrânia tenha “recorrido a ações militares forçadas” em relação à usina.
Mas durante semanas os combates em torno da usina, a maior instalação nuclear da Europa, levantaram temores de um acidente nuclear. Os engenheiros ucranianos que trabalham lá estão sob coação, de acordo com autoridades ucranianas. O relatório da ONU disse que os trabalhadores estavam sob “alto estresse e pressão constantes” e que a situação “não era sustentável”.
Na segunda-feira, depois que o bombardeio iniciou um incêndio no terreno do complexo, a usina foi desconectada da rede elétrica. Isso significa que os sistemas de resfriamento que impedem o derretimento dos reatores correm o risco de depender apenas de energia de reserva de emergência, disse o ministro da Energia da Ucrânia.
O reator nº 6, o único reator em funcionamento da usina, ainda produzia energia para a própria instalação. Até a noite de segunda-feira, os engenheiros não haviam ligado os geradores a diesel, de acordo com um funcionário da Energoatom, empresa ucraniana responsável pela operação da instalação.
Mesmo enquanto a agência de monitoramento nuclear se preparava para divulgar seu relatório, os bombardeios de artilharia continuaram na área ao redor da usina de Zaporizhzhia. Os militares ucranianos disseram que rajadas de foguetes atingiram a cidade de Nikopol, do outro lado do rio Dnipro, da usina, danificando prédios de apartamentos e casas particulares e cortando a energia de alguns bairros. Não houve relatos de vítimas.
Do outro lado do rio, na cidade de Enerhodar, que abriga muitos funcionários da usina nuclear, moradores relataram ter ouvido uma forte explosão na terça-feira, disse o prefeito de Enerhodar, Dmytro Orlov, em um post nas redes sociais.
Há semanas, as pessoas que vivem perto da estação, tanto em território controlado pela Ucrânia quanto em território russo, estão fugindo ou tentando. As estradas para evacuar da zona ocupada russa para o território ucraniano – a mesma rota que os inspetores nucleares percorreram para chegar à estação – têm sido perigosas por causa do bombardeio de artilharia.
Na terça-feira, a vice-primeira-ministra ucraniana, Iryna Vereshchuk, disse que a Ucrânia havia proposto um corredor humanitário, onde ambos os lados cessariam os ataques de artilharia, para facilitar a fuga da área, mas que a Rússia recusou.
A reportagem foi contribuída por Ivan Nechepurenko, Andrew E. Kramer e Farnaz Fassihi.