Atualidades com Marcello Amorim
Nossa democracia está sendo vencida pela idolatria política
O Brasil está além de uma crise ideológica, está construindo um altar idolatra de políticos e politiqueiros. A palavra “idolatria” é formada pelo radical grego “eidolon”, que quer dizer “corpo” ou “matéria”, e o radical “latreia”, que significa “adoração”, portanto, idolatria é o ato de adorar coisas materiais, louvar algo que é corpóreo.
A história nos diz que o termo “ídolo” vem sendo utilizado para demonstrar uma espécie de atitude religiosa equivocada, um direcionamento da religião para algo que não é realmente uma divindade.
Com um processo brutalmente acelerado após o advento da internet, houve uma verdadeira revolução tecnológica das comunicações que proporcionou o aumento do acesso aos trabalhos de artistas, intelectuais, líderes religiosos e políticos. Tudo isso só foi possível, com a consolidação da imprensa e que gera a cada minuto uma multidão ‘fiéis’.
É bom lembrar que, mesmo antes, o termo “ídolo” já havia sido estendido para além do campo do sagrado e passou a ser comumente utilizado para se referir a seres humanos que se destacam na sociedade. Hoje em dia, a idolatria, antes restrita ao religioso, passou a ser percebida no culto que milhões de pessoas prestam a músicos, youtubers, esportistas, coachs, compositores, pintores, escultores e artistas.
Na prática, o ato da idolatria parece ter ocorrido desde os primórdios das civilizações, associado a isso, historicamente, temos diversos exemplos de veneração à governantes como se eles fossem divindades ou até mesmo enviados pelo Eterno. O que dizer dos Césares e Neros. No entanto, após o surgimento das redes sociais, no Brasil, a idolatria política parece ter adquirido uma força social ainda maior.
Tudo isso nos leva a um estudo sociológico mais amplo, pois, se é necessário responder como se comporta a idolatria política, o que a diferencia dos ídolos ou personagens religiosos e como são construídos esses ídolos políticos.
Precisamos entender ainda o quanto ou em que tamanho se identificam as consequências desse tipo de veneração. É obvio que a idolatria política produz diversas consequências deletérias para a sociedade, sendo a maior delas a fragilização e até mesmo o risco de supressão da nossa democracia. Já conseguimos constatar que a modernidade trouxe uma transferência de sacralidade sem que se trate de religiões propriamente ditas e sim, que essa idolatria está se manifestando no campo político com efeitos mais devastadores do que a proliferação de livros medíocres e ações culturais de imprestável qualidade.
Após assistir detalhadamente o primeiro debate presidencial realizando pela Band no último domingo, 16, somos capazes de entender a diferenciação que deve ser feita nos comentários transcritos pelos ‘eleitores’, ou melhor, idolatras políticos que não fazem questão de revelar suas práticas ritualistas para favorecer seu candidato. Por outro lado, os dois presidenciáveis usam continuadamente uma linguagem religiosa para arrebanhar eleitores e demonizar o adversário na disputa pelo poder.
No debate da Band, ao ouvir Jair e Lula, lembrei-me dos descritos de Nikita Khrushchov (1894-1971), político soviético que liderou a União Soviética durante parte da Guerra Fria como Secretário-Geral do Partido Comunista da União Soviética de 1953 a 1964 e como presidente do Conselho de Ministros de 1958 a 1964, onde afirmava que a idolatria política não é o ‘culto à personalidade’, no livro “Discurso Secreto” de 1956, onde ele denunciava a estratégia de auto exaltação de Josef Stalin (1878-1953) ¹. Mas, não era isso que se via, pois os presidenciáveis trabalharam o culto às suas personalidades, no geral, como uma estratégia política de propaganda baseada na glorificação das suas ‘nobres virtudes’. Para muitos eleitores, verdadeiras ou forjadas.
Entretanto, os anais históricos nos revelam que o culto à personalidade foi mais comum em ditaduras soviéticas que promoveram o ateísmo como política oficial de estado, como nos casos da União Soviética de Stalin, da China de Mao Tsé-Tung, da Mongólia de Khorloogiin Choibalsan e do Camboja de Pol Pot². Em todos esses casos de culto à personalidade, as instituições religiosas foram perseguidas, o ateísmo foi estimulado e os líderes foram exaltados, tudo isso sem se utilizar da linguagem religiosa.
Dia 30 de outubro está chegando e precisamos nos conter que, nos dois casos – cultos à personalidade e idolatria política –, os próceres são exaltados como aqueles que, com seu patriotismo e amor pelo povo, servem como benfeitores, que protegem e salvam a nação brasileira.
Analistas do cenário social brasileiro e cientistas políticos tendem a discutir as supostas linhas ideológicas da atual atmosfera política da nação como ‘direita’, ‘esquerda’ e ‘centro’; e a força midiática trabalham insistentemente com a ideia de que os ‘romeiros eleitorais’ fazem suas escolhas baseados nessa dicotomia ideológica, renegando a importância do sentimento de idolatria latente em cada um deles. Por isso, a idolatria política está bem visível nesta eleição presidencial.
A veneração política está tão entranhada na ‘fé’ do votante e seguidor de um ‘ídolo político’ que força a mudança das convicções a depender do que o ídolo fala ou faz. Exemplo disso é que um dos candidatos foi pego em vários atos de corrupção na sua carreira pública, mas, seus idólatras tendem a relativizar a corrupção, levantando alegações como: “é necessário fazer alianças para governar ou um bem comum”; ou, “isso é praticado por todos”; ou ainda, “ele não inventou a corruptela”. Assim, aqueles que têm ídolos políticos corruptos buscam formas de argumentar que o seu escolhido é menos corrupto do que é seu adversário.
Enfim, pode-se pressupor que esse é um fenômeno deste pleito, onde se demonstra bem como a idolatria política está sendo muito mais determinante que as ideologias e programas de governo defendidas. Essa é a crença do início do caos, principalmente porque é o posicionamento de uma parcela muito grande da população, que, inclusive, será determinante nesta eleição.
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NOTAS
¹ KHRUSHCHEV, Nikita (1956). O Discurso Secreto – Sobre o Culto da Personalidade. Fordham University Modern History Sourcebook, 2007. Disponível em: <https://sourcebooks.fordham.edu/mod/1956khrushchev-secret1.asp> Acesso:17.10.22
² MOREIRA, Alberto da Silva. O deslocamento do religioso na sociedade contemporânea. Estudos de religião, v. 22, n. 34, p. 70-83, 2008. Disponível: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/6342560.pdf Acesso: 17.10.22
REFERENCIAS
SCULLY, Michael. Quanto custou Perón à Argentina in. Reader’s Digest, RJ, 1956.
VELHO, G. Projeto e metamorfose: antropologia das sociedades complexas. Zahar, 1994.